A homogeneização dos sujeitos – Número 142 – 12/2015 [115 – 120]

A

Este Breviário em PDF

RAE, Heather. State identities and the homogenization of peoples. Cambridge University, 2003.

Homogeneização dos Sujeitos.

Nemayda Furtado e Tamires Maria Alves.

            No livro “States Identities and the Homogenization of Peoples” (2003) de Heather Rae, a autora tem como objetivo principal inserir o fator cultural no campo político das Relações Internacionais.  É através desta cultura que as identidades e os interesses são formados. Seguindo uma linha de pensamento construtivista a autora vai afirmar que estes fatores desempenham um papel importante para compreendermos as ações políticas tanto no âmbito interno quanto externo. Para ilustrar seu argumento, cita quatro exemplos de Estados que utilizaram a estratégia da homogeneização patológica, movidos por motivos culturais, para construir seus Estados de maneira uniforme. E é através destes exemplos que a autora apresenta como as normas internacionais evoluíram e passaram a restringir a conduta dos Estados.

            Heather Rae começa a construir seu argumento demonstrando o que as teorias mainstream obscurecem. Critica principalmente as teorias de Relações Internacionais que Cox classifica como teorias solving problems, que negligenciam que os fatores internos possam influenciar as questões internacionais, como o neorrealismo de Waltz. Para ela essas teorias não estão aptas para explicar os processos de formação dos Estados nem as questões de homogeneização patológica que ocorreram. Também faz críticas a outras teorias da ciência política, alegando que elas não tratam esta última questão com a profundidade necessária.

            Um dos autores dos quais Rae teceu mais criticas foi Wallerstein. Alega que o autor tem uma visão reducionista, pois seus olhar materialista faz com que ele não enxergue a complexidade que há nas questões que envolvem também cultura, política e não apenas as questões econômicas (as quais ele prioriza). Wallerstein afirma que os processos de homogeneização da população eram muitas vezes acompanhados pelos deslocamentos forçados, que aconteciam em função das exigências do crescimento econômico do sistema mundial. Rae, porém, afirma que os motivos econômicos não são responsáveis por todos os processos de homogeneização que ocorreram no mundo.

            Rae critica ainda outro teórico, Tilly, e alega que este peca ao tratar o caso da homogeneização patológica como uma medida administrativa do Estado. O que a autora pretende apresentar com isso é que apesar de algumas visões que tratam da questão da formação do Estado discorrerem a respeito da homogeneização patológica, elas se abstém de levar em consideração um fator que para ela é crucial: a questão cultural.

            O primeiro episódio estudado pela autora foi o caso espanhol. Com o casamento entre as dinastias Castilho e Aragão, veio o desejo de tornar o país um Estado homogêneo. Em 1492 foi dada aos judeus a opção de se converterem ao catolicismo ou deixarem o país, este foi caracterizado como um momento de ruptura com a Era Medieval, onde judeus, cristãos e mulçumanos conviviam de forma pacífica. A mesma opção de se converter ou deixar o país foi dada aos mouros mais tarde no reinado de Charles V. Todavia este não foi o fim do processo de homogeneização no Estado, uma vez que em 1609 os mouros (muçulmanos) foram expulsos por Philip III.

            Em um determinado momento a raça e a religião passaram a entrelaçar-se. Logo, os convertidos não poderiam mais ser aceitos, pois sua raça não se alterava com a conversão. A inquisição espanhola começou a cassar então, os convertidos para expulsá-los.

            A autora afirma através deste exemplo que a prioridade do Estado espanhol era construir uma nação com a identidade homogenia independente de fatores econômicos. Corrobora com seu argumento o fato de judeus serem produtivos economicamente enquanto os mouros eram predominantemente trabalhadores rurais. Portanto, dois setores da sua economia sofreram perdas.

            O segundo caso que Heather Rae apresenta no seu livro é o caso francês. O Édito de Nantes, feito para promover a convivência pacífica entre protestantes huguenotes e a monarquia francesa católica, foi revogado por Louis XIV fazendo com que os huguenotes fossem proibidos de continuar morando na França e isso iniciou a perseguição contra os mesmos. Embora os huguenotes não apresentassem nenhuma ameaça militar ou política ao estado francês, para o rei eles representavam uma ameaça a unidade do Estado.

            Mais uma vez Rae aponta que a religião, vista por ela como fator cultural, desempenha um papel de suma importância. “… the use of religious criteria of identi?cation in constructing the corporate identity of the state and the legitimacy of the sovereign in this prenational era.” (Rae, p.84).

            A hostilidade entre protestantes e católicos se iniciou em 1534 quando os primeiros espalharam placas contra a massa católica por toda Paris. Este ataque foi interpretado como uma agressão também a monarquia, e a partir de então os protestantes começaram a ser vistos como subversivos e hereges.

            Uma característica que diferencia este caso do anterior é que a homogeneização patológica na França se deu também através do massacre do dia de São Bartolomeu, que foi marcado por quatro eventos: o primeiro foi o atentado que falhou contra o líder huguenote, o segundo foi o massacre contra a nobreza protestante, o terceiro foi a consequência destes assassinatos e o quarto foi a onda de massacres e violência que ocorreu em Paris. Portanto, para Louis XIV era importante ter a unidade religiosa na França, pois simbolizava a legitimidade e a força da autoridade do monarca tanto interna quanto externamente, configurando assim mais uma razão para a expulsão e massacre dos huguenotes no Estado.

            O terceiro caso abordado por Heather Rae tem seus desdobramentos devido a outro fator cultural: o nacionalismo. Os armênios sofriam com a discriminação na Turquia desde tempos primórdios, quando o Sultão não aceitava nenhuma de suas demandas e alegava que eles somente seriam tolerados se aceitassem a discriminação que sofriam. Posteriormente os Novos Turcos não queriam tolerar os armênios, estavam inflamados pelo anseio de construir um Estado homogêneo e racional turco. O principal empecilho eram os grupos minoritários, sendo o maior deles os armênios.

            Uma das formas de instigar o ódio da população turca era enfatizando as muitas diferenças entre a religião muçulmana e os armênios. O genocídio deste povo teve como pretexto a guerra santa (jihad) contra os infiéis, fazendo com que a população participasse mais ativamente dos massacres e deportações deste grupo. Essa limpeza étnica também foi caracterizada através da destruição de seus símbolos e sua literatura. Portanto, a expulsão dos armênios não estava ligada tão somente a religião dos Novos Turcos, mas principalmente ao aspecto nacionalista desta nação que vinha do desejo de se tornar novamente um grande império e para isso era necessário prezar pela unidade dentro do seu Estado e os armênios obstruíam este objetivo. Até os dias atuais estes episódios são negados por diversos grupos turcos.

            O último caso que a autora analisa que efetivamente realizou o processo de homogeneização patológica se deu na antiga Iugoslávia. Através deste exemplo Rae quis demonstrar que a homogeneização patológica ainda era vista como um recurso viável na construção de um Estado, principalmente porque não haviam instituições capacitadas para constranger as elites a não recorrerem a tais práticas. Para a autora ilustrar seu argumento ela reconstrói toda história da formação e desintegração da Iugoslávia a fim de apresentar como o elemento do nacionalismo foi crucial para as experiências de limpeza étnica realizadas no país.

            No caso da Bósnia-Herzegovina, por exemplo, a autora destaca que a elite sérvia manipulou símbolos nacionais para inflamar no seu povo o sentimento nacionalista e fez, portanto com que os sérvios começassem a se diferenciar dos não-sérvios. Quando os bósnios-sérvios conseguiram alcançar uma determinada autonomia através da sua própria constituição, os sérvios iniciaram uma série de ataques e passaram a controlar grande parte da Bósnia-Hezergovina. A partir de então os bósnios começaram a ser deportados, mortos ou a se submeterem ao regime sérvio. O conflito só terminou em 1995 através dos acordos de Dayton.

            Já no caso do Kosovo o líder nacionalista Milosevic não aceitava a independência deste Estado. Muitos kosovares albaneses foram obrigados a deixar o país, pois estavam sendo assassinados pelas forças da Iugoslávia. A comunidade internacional tentou cessar o conflito diplomaticamente, todavia como isto não foi respeitado, a OTAN iniciou ataques em Belgrado para acabar com a limpeza étnica que estava sendo realizada no Kosovo. Com o fim do conflito foi instaurado o governo em Kosovo.

            A partir deste caso Rae faz um gancho com o que desejava demonstrar posteriormente, sobre como a comunidade internacional cria uma série de regras de convivência que acabam por constranger ações como a homogeneização patológica praticada pelos Estados através da criação de identidades corporativas. Com isso, o “outro” não pode mais ser excluído e acaba por ser resguardado, por conta do papel que as normas passam a desempenhar no plano internacional. Isso se dá porque com as normas internacionais em vigor, há a manutenção da ordem, o que para a autora acarreta a produção de determinada justiça.

            Se utiliza da crença de Wendt ao discorrer que os aspectos corporativo (doméstico) e social (internacional) da identidade do Estado, são mutuamente constituídos. Entretanto se opõe ao autor quando argumenta que a construção da identidade corporativa deve ser mais valorizada pelos acadêmicos de Relações Internacionais.

            Durante toda sua obra Rae vai corroborar com a crença de que as elites políticas se utilizaram de mecanismos de diferenciação para transformar o outro em ameaça e com isso concretizar atos de homogeneização patológica. As fronteiras domésticas morais passam a ser redefinidas pelas elites quando estas fazem uma releitura da cultura local a fim de alcançar seus objetivos.

            Os dois casos apresentados posteriormente pela autora, República Tcheca e Macedônia, acontecem num contexto internacional onde as normas de legitimação do Estado são pautadas sobre regras de democracia e do respeito aos direitos humanos, portanto, não recorreram a praticas de homogeneização patológica.

            O caso da República Tcheca se inicia com a dissolução pacífica da Tchecoslováquia devido a desentendimentos entre as elites Tcheca e Eslovaca. Os romanos que habitavam a República Tcheca tinham maiores índices de criminalidade que outros grupos, e os Tchecos os enxergavam como outsiders. Muitos romanos vindos da Eslováquia não tinham documentos que provassem sua cidadania Eslovaca, portanto não conseguiam também se tornar cidadãos da República Tcheca tornando-se assim apatriados. Em busca de legitimidade internacional a República Tcheca tenta atenuar os conflitos para alcançar seus objetivos maiores, embora até os dias atuais este cenário permaneça ocorrendo.

            O último caso ilustrado por Rae é o emblemático caso da Macedônia, que consegue se desvincular da Iugoslávia de maneira pacífica. A cultura deste país estava intimamente ligada com sua religião, porém cerca de um terço de sua população era albanesa e, portanto se sentiram excluídos dessa identidade nacional criadas pelos macedônios, apesar de também fazerem parte deste país. Isso fez com que emergissem alguns conflitos no Estado. A pressão internacional fez com que o país repensasse a identidade corporativa do seu Estado e amenizasse seus conflitos internos.

            O desenvolvimento do trabalho de Heather Rae teve a intenção não apenas de apresentar à necessidade de se levar em consideração a questão cultural que muitas vezes é subestimada pelas teorias de Relações Internacionais, como também apresentar de que maneira a construção de identidades e interesses pelas elites dominantes são essenciais para comprovar determinadas escolhas realizadas pelos Estados. “State-builders are influenced by, and draw upon, the cultural resources of their time and place, although, as we have seen, as they do so they may simplify, manipulate and even distort these for their own purposes” (Rae, p.299).

            Através da sua argumentação a autora procura elucidar sua crença de que ao longo dos anos as normas internacionais tornaram-se responsáveis por desenvolver um papel que constrange os Estados a tomarem determinadas decisões no seu âmbito interno. Isso faz com que a mesma acredite que essa lógica da ordem internacional trouxe uma maior justiça para os cenários domésticos dos Estados.

            Por fim a autora conclui sua obra com uma posição favorável a intervenções humanitárias, independente se isto vai infringir a soberania do Estado, pois as perdas humanas não podem ser colocadas abaixo da soberania estatal. Embora esse muitas vezes pareça um argumento frágil devido aos sumários casos de autoritarismos impostos por intervenções humanitárias, Rae fundamenta o porquê de seu argumento ser favorável a estas ao longo de todo o livro, que passa a impressão de que em um sistema de pesos e contrapesos realizado pela autora, as intervenções humanitárias, na maior parte dos casos, parecem mais benéficas do que o descaso fantasiado de neutralidade.

Cesar Kiraly

Professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense.