“O monstro é, paradoxalmente – apesar da posição-limite que ocupa, embora seja ao mesmo tempo o impossível e o proibido –, um princípio de inteligibilidade. No entanto, esse princípio de inteligibilidade é propriamente tautológico, pois é precisamente uma propriedade do monstro afirmar-se como monstro, explicar em si mesmo todos os desvios que podem derivar dele, mas ser em si mesmo ininteligível. Portanto, é essa inteligibilidade tautológica, esse princípio de explicação que só remete a si mesmo, que vamos encontrar bem no fundo das análises da anomalia” (Foucault, Michel. Os anormais. São Paulo: Ed. WMF, 2010, p.48).
Estudando as práticas de saber e de poder envolvidas nos costumes penais da França a partir de fins do século XVIII, o historiador e filósofo Michel Foucault classificou a associação entre o emergente saber psiquiátrico e o sistema jurídico pós-Revolução Francesa como um regime de “normalização”. Naquele contexto, tratar-se-ia, para Foucault, de um sofisticado arranjo entre saber científico e poder judiciário, a partir do qual se estabelecia uma linha demarcatória entre o normal e o patológico. Com tal arranjo, a defesa da sociedade contra certos “crimes bárbaros” se apoiaria na própria construção da categoria do monstro, do anormal, como algo em grande medida alheio ao social – um lado de fora da sociedade que, assim, atribuir-se-ia o trabalho de normalizar o desviante tal como uma civilização se dispõe a colonizar um povo bárbaro. Nesse sentido, o anormal, longe de ser pensado e tratado em sua relação intrínseca com o “normal”, seria visto como manifestação de algo monstruoso, e poderia apenas explicar a si mesmo. No circuito de inteligibilidade tautológica de que fala Foucault, o monstro é compreendido como um princípio de explicação, mas permanece, paradoxalmente, isolado e ininteligível – dele apenas se infere sua própria opacidade.
Guardadas as devidas singularidades históricas, e especificidades casuísticas à parte, o caso do assassinato de doze crianças em uma escola de Realengo, bairro pobre do Rio de Janeiro, remete ao tema da normalização e das formas contemporâneas de articulação de uma defesa da sociedade contra o anormal e a anomalia. Na manhã do dia 07 de abril, um jovem de 24 anos retornou à Escola Municipal Tasso da Silveira, onde havia estudado, para disparar contra as crianças que lá assistiam à aula. Além das 12 assassinadas, outras 22 crianças ficaram feridas na chacina que teve fim com a chegada de policiais militares ao local e o suicídio do autor da barbárie.
A reação da sociedade, frente à imediata ininteligibilidade de tal ato, pode talvez ser entendida como uma normalização atípica, posto que o objeto a ser normalizado (o sujeito do crime) já não mais existe. Porém, se, por um lado, a normalização exige a correção e inclusão do anormal, e o suicídio aparece aqui como obstáculo; por outro lado, talvez o efeito das práticas normalizadoras se imponha, nesse caso, menos sobre o sujeito desviante e mais no “mundo normal”, re-estabelecendo os fundamentos de uma ordem abalada pelo crime monstruoso. Parece ser necessário afirmar e reafirmar, investigando os mínimos detalhes e vestígios da personalidade do criminoso, que se trata de uma monstruosidade, fruto da demência e insanidade de um rapaz atormentado – cujos tormentos teriam origem em obscuras crenças religiosas, resquícios de tempos e costumes pré-seculares e pré-científicos. Assim, o discurso normalizador reporia de volta ao estado de segurança ontológica uma sociedade traumatizada pela monstruosidade que, no fim de minuciosa investigação, é tido por extra-social: uma alteridade intocada, em sua brutal insanidade, pelos bons ares da normalidade racionalizante.
Em boa parte das narrativas, o crime seria este fato isolado: senão uma patologia completamente singular e individual, no máximo algo que remeteria a um pequeno micro-cosmo de anormalidades partilhadas, como na suspeita de que se tratasse de um atentado terrorista motivado por crenças muçulmanas. Outras narrativas, contudo, buscaram explorar o possível fundamento social do crime na prática extensiva do bullying (atos discriminatórios e por vezes violentos) entre crianças e adolescentes. Mesmo nesta tentativa de vinculação social do terrível evento, há que ressaltar o caráter dualista que persiste numa concepção de que este fenômeno, pleno de conseqüências nocivas, seria próprio de um “mundo das crianças e adolescentes”, concebido como espaço à parte da própria articulação funcional da sociedade como um todo. Como se o bullying fosse, mesmo com sua capilaridade e extensão no tecido social, algo anômalo e específico do universo infanto-juvenil contemporâneo.
Para além de certo grau de opacidade próprio a atos como a chacina de 07 de abril, parece mais profícuo analisar a reação da sociedade, em sua sanha normalizadora, do que buscar a resposta para o crime nas entrelinhas das declarações e cartas do assassino-suicida. Recusar, portanto, a lupa psicologizante e atentar menos para o discurso do próprio assassino do que para um metadiscurso a respeito do assassinato pode induzir a uma boa leitura que apreenda da dialética indivíduo-sociedade um conteúdo produtivamente crítico.
Telejornais voltados exclusivamente para a reconstituição da trajetória do atirador de Realengo e o acompanhamento dos efeitos do crime; jornais impressos estampando em sua capa fotos – de página inteira – de crianças mortas; intelectuais, cientistas e jornalistas debruçando-se sobre o caso em busca do correto esquadrinhamento do monstro: eis um panorama do que ocorreu no cenário midiático brasileiro nos dias que se seguiram à tragédia.
Os canais de televisão aberta, veículos de informação com maior centralidade na vida social brasileira, concederam notável destaque a vídeos e cartas legados pelo assassino como relíquias do processo de composição da atrocidade. Este acompanhamento pormenorizado do “making of” de um massacre deixa entrever alguns elementos de uma forma geral de subjetividade social que, a posteriori, não se mostra assim tão alheia à veneração da violência que, de alguma forma, se consubstanciou na chacina. Em primeiro lugar, portanto, o metadiscurso do assassinato revela certa fascinação com a violência, certa hipnose que toma de assalto a consciência coletiva quando da ocasião de barbaridades como a de Realengo. Evidente, pois, que não há aqui possibilidade de responsabilização pontual dos jornalistas ou dos veiculadores de informação: seu desejo de se aproximar o máximo possível da tragédia, de inspecionar a dor dos familiares das vítimas, de ver e rever o vídeo em que o facínora balbucia seus “motivos”, de conhecer a aparente alteridade absoluta representada pelo assassino-monstro, todos esses desejos se espalham pela sociedade. Neste ponto, o discurso que se limita a condenar os meios de comunicação pela espetacularização da violência perde o foco central. Tal espetacularização não é produto autóctone de uma dinâmica interna do modus operandi dos meios de comunicação; trata-se, antes, do efeito perverso de toda uma forma de sociabilidade, em que a dialética fascinação/ojeriza com relação à brutalidade se manifesta, de maneira “democrática”, por toda a sociedade.
Não faltaram, então, associações entre o perfil psicológico do matador e outros célebres criminosos anormais e mostruosos. Um dos preferidos da mídia nacional foi o paralelo entre o assassino de Realengo e o terrorista egípcio Mohammed Atta, co-autor do atentado contra o World Trade Center, em 11 de setembro de 2001. A vinculação com este evento em particular, que se inscreve como o “mal por excelência” em certa subjetividade ocidental, é sintomática de uma necessidade de defesa da sociedade que se manifestaria na expulsão da anomalia para o terreno do mal – onde lidamos mais uma vez com a inteligibilidade tautológica do monstro que, em última instância, não se dá a conhecer e permanece ininteligível. Como se revestir o mal de opacidade e de ininteligibilidade, cortando seus laços com a “sociedade normal”, fosse um imperativo de defesa emergencial para uma sociabilidade aparentemente incapaz de aprender com seus próprios erros.
O processo de normalização, cujas análises minuciosas da anormalidade compõem um aparente registro de reflexividade, requerem também o auxílio da ciência para que se realize legitimamente enquanto movimento de reconstituição racional da loucura. Nesse sentido, vemos a ciência a serviço da ideologia, nas balizadas manifestações de psicanalistas, psiquiatras, cientistas sociais, dentre outros. Em especial, um desses discursos-peritos chama a atenção, e aparece como ilustrativo da funcionalidade defensiva em que a sociedade moderna enreda os trabalhos científicos. Convocado por um grande jornal sediado no Rio de Janeiro para dar seu parecer sobre o caso, um especialista em grafologia (técnica de análise da escrita para inferir sobre traços de personalidade) concedeu o seu aval de legitimidade para a óbvia versão do jornalista. Afirma o lead da matéria: “A análise da escrita de Wellington Menezes de Oliveira, o assassino (…) que deixou três cartas sobre o crime, confirma o perfil psicológico atormentado do rapaz” (O Globo, 14/04/2011, p.18).
O parecer deste perito é tanto mais importante quanto mais o seu saber científico aparece plenamente instrumentalizado pela força-tarefa normalizadora. O “perfil grafológico” que o cientista constrói do assassino identifica insanidade e anomalia até em sua grafia, consolidando (e “confirmando”) a imagem de uma personalidade inteiramente coerente em seu desvio. Segundo o grafólogo, as imagens do movimento que o criminoso fazia ao escrever, a forma e o espaço gráfico dos manuscritos o levaram a concluir que o assassino tinha “conflitos internos que o consumiam”. Haveria ainda variações de pressão na escrita das cartas, que seriam “notórios sinais patológicos”. Após o exame, a conclusão a que se chega é a mesma de antes, autônoma e independente da ciência: segundo o expert, as cartas “mostram que a agitação interior domina a vida psíquica do indivíduo. Também sinalizam que a sua instintividade tende a escapar ao controle da razão. Fica claro que ele, quando tenta se aprofundar em algo, ou mesmo diante de alguma contrariedade, tende a cair na ‘mania de incompreensão’ ou no fervor religioso”.
Além deste bombardeio normalizador levado a cabo pelo complexo midiático-científico no Brasil, o evento trágico do Rio de Janeiro trouxe mais uma vez à tona discussões sobre a necessidade de intensificar os esforços do Estado no sentido de desarmar a população. Em outubro de 2005, realizou-se um referendo para consultar a população sobre sua posição quanto à legalidade da venda de armas para os cidadãos. Com 64% dos votos, a decisão contrária à proibição da comercialização de armas de fogo e munição em todo o território nacional frustrou os esforços do próprio Governo Lula, que havia incentivado e investido na campanha pelo desarmamento.
A facilidade que teve o assassino de Realengo para adquirir as duas armas com as quais efetivou a chacina não apenas reacendeu o debate em torno desse suposto “direito à arma”, como também levou senadores a proporem a realização de um novo referendo, em outubro deste ano, sobre o tema. A matéria, que ainda há de ser votada no Congresso Nacional, provocou celeuma. Alguns acusam os políticos, e particularmente o presidente do Senado, José Sarney, de oportunismo, denunciando no projeto de um novo referendo sobre o desarmamento a tentativa de capitalização política da tragédia. Enfatizando este argumento, o sociólogo Demétrio Magnoli defende a justeza da decisão popular de 2005. Para ele, os 64% de votos contra o desarmamento constituem evidência do apreço do povo pelas liberdades, manifestado pelo rechaço ao “desarmamento unilateral de cidadãos comuns” (O Globo, 14/04/2011).
Por outro lado, tal como frisa a jornalista Dorrit Harazim e o deputado federal Chico Alencar, das 14 milhões de armas que estão hoje no Brasil, 7,6 milhões, ou seja, mais da metade, são armas ilegais que fazem parte de um amplo mercado ilícito – onde se torna fácil para qualquer cidadão comprar uma arma de fogo sem passar pelo escrutínio legal. Para o pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência (USP), Renato Alves, a correlação entre a permissividade no acesso às armas e a ocorrência de chacinas como a de Realengo é óbvia: “Desequilibrados toda sociedade tem. Mas desequilibrado com acesso fácil a uma arma de fogo é o que leva à letalidade grave. Mesmo um equilibrado com arma na mão é problema”.
Além das investidas normalizadoras, funcionais para a reprodução automatizada e pré-reflexiva da sociabilidade, o cruel assassinato de doze crianças em uma escola de Realengo pode deixar como legado, além da dor e do luto, a atualização de um debate político sobre a questão do desarmamento, que havia sido dada por resolvida na decisão popular, amplamente majoritária, de 2005.
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Pedro Lima